sexta-feira, 28 de março de 2014

Arte no desnude

A exposição artística, se não tão velha quanto à primeira lasca rupestre em alguma parede de pedra do norte da africa, é provavelmente criada logo em seguida. Inerente ao homem está a necessidade de reconhecimento pela própria crença, é plausível. Não fossem só os tracejos alusivos à caça bem sucedida, eram marcantes também as homenagens másculas dos marinheiros em desalento, corroídos pelo relento oscilante do tempo, na súplica de suas saudades além-mar, expressadas em âncoras e navios que os prendiam à perene e padecida alma na falta de suas amadas. Desalento, relento, do tempo, isso tudo. Era todo o ínfimo sentimento açucarado que se escondia entre as cicatrizes espartanas dos marujos de epopeia reduzida, se a licença poética nos permite, mais uma vez. Ao expor, no sentido claro do palavra, o que é seu por essência, aplausos sempre são bem vindos. Essa tendência artística começou a fazer sucesso no corpo no final do século XX com os adeptos de estilos musicais e culturais tentados a arraigar seus ideais na marra - o grande divisor de águas, determinístico para o sucesso da tatuagem até os dias de hoje. Os desenhos pendularam, tendo seus altos e baixos ao longo dos cem anos que universalizaram o estilo; de tristes marcas de guerra e alvos de surto de hepatite a considerações medicinais que acreditavam que o lance ajudava a preservar a pele. Fato é que a tatuagem é a ideia da exposição definitiva, do clamor, da imersão irrompível, do ato de assumir a própria cultura ou estilo, e isso, com certeza, acompanhou a volatilidade das tribos que nasciam na segunda metade do século. Do submundo hardcore do punk aos Joplinianos aglomerados no anti-americanismo do final dos anos 60, a marcação do corpo - à tinta ideológica - baseia-se, em sua maioria, no cuspe aos valores e à padronização. Os aplausos destas pós-exposições artísticas já não eram tão bem vindos. Mas as vaias, ah, se eram... Viva le société alternative!
Na mesmice de entrar na contemporaneidade, entra em cena o business em lata, o corporativismo e a (de novo) padronização vomitada pelos detentores de moeda (ufa!). Inevitável que venha à tona a ideia de que não restam espaços aos tatuadores e tatuados, tachados, de vez em sempre, de ex-presidiários ou desocupados.  Mais um preconceito à luz de fundamentos paupérrimos. E mais um motivo para as agulhas permearem peles por aí, seja lá qual for o molde no qual a noção de pertencimento alheia melhor se encaixe. O âmago da historia é ir contra a maré, e sempre foi... Já que tolerância, ao final, é ainda a grande obra a ser exposta. A cultura da tatuagem põe em cheque os que pregam, ou os que se dizem pregadores, do desapego imagético, já que são todos de um mesmo grupo martirizador do status. Denotação pejorativa pra uns, é sabido que na maioria dos casos descobrir um desenho estampado nas costas de um estagiário pode ser o critério de desempate, ou tornar ríspida uma conversa com uma atendente de loja. O tabu acerca de se ter um traço no corpo é tão grande quanto a jaguncez em torno da discriminação. E isso sim é muito bem exposto. 

terça-feira, 18 de março de 2014

Dançar conforme a letra, poesia curtida e curtir poesia.

Na biblioteca da Faculdade Livre de Berlim, cujo design em forma de "cérebro" rendeu diversos prêmios arquitetônicos, é possível encontrar a nata da literatura brasileira disposta em quatro ou cinco prateleiras. Do exílio romântico de Casemiro de Abreu - que nunca soara tão apropriado - aos melismas de Leminski, passando pela inenarrável sensação de ver o Sertão de Guimarães Rosa em duas outras línguas, tudo ali indicava uma epifania surrealista, dessas de  roteiro de filme trash-cult. Que interessante seria viver daquilo e largar o coxismo, se embriagando da vida boemia de um literário mal de grana à margem do mundinho monetarizado e conquistar uma legião de apaixonados. Essa vontade se explica, até pelo número de divisões feita na carreira de "letras": Literatura romântica, russa, esquerdista, analítica, e assim segue. A tendência de se haver uma especialização logo na graduação, é deveras disseminada na Europa toda. E isso, irremediavelmente, tem tudo a ver com o fato de que a pesquisa puramente acadêmica é incentivada sem o dever do empirismo. Isso gera uma liberdade criativa, fortalecida ao passo que a docência não é o único caminho a ser seguido e tampouco desencorajada. Que atire a primeira pedra quem nunca ouviu alguém dizer que "não quer morrer corrigindo prova", "não seja professor nesse país" ou coisa do gênero. A má remuneração explica mas não justifica. O desencorajamento tupiniquim de muitos jovens só incentiva o êxodo desses mundão afora... um baita desperdício de mentes tão promissoras e filhas de um país com literatura incomparável, seja dito. 

Livrescamente falando, um outro fato curioso é a poetização dos assíduos contribuintes das redes sociais. Ah, as redes sociais. Duvido que os precursores - desde a época orkut- imaginavam, no mais otimista dos sonhos, que as proporções seriam essas. Só em 2013 os números beiravam os 50 milhões. Cifras e ações à parte, o lance é que poetas no mundo inteiro nasceram com a facilidade de se procurar uma frase profunda e barganhar um punhado de curtidas. Esse surto de arrasa-corações não para aí; os escritores de ofício- cujas frases são ingrediente dos galanteios - têm seus nomes postos em versos da autoria de outros, e assim vai. Quem diria ver Lord Byron falando do amor de ninfas. Coisas da literatura... O certo deve ser cérebros em formato de biblioteca, e não o contrário. O prêmio seria geral. 

sábado, 8 de março de 2014

Luta e luto no finíssimo mercado.

À beira da casa dos 30 bilhões, o mercado artístico, em 2013, contempla o que foi o ano de maior prosperidade financeira em torno de seu principal produto - a tal da arte, por menos que pareça. A cúpula de críticos, entendedores e entusiastas do assunto, que compõe também os principais traders de quadros milionários, se torna cada vez mais adepta da pseudo-arte, protagonista das principais galerias e leilões requintados no cerne dos que se autoproclamam resgatantes da boa arte. Aparentemente dúbias, as avaliações acerca das obras responsáveis por levar as cifras da indústria a patamares absurdos, consagram critérios discutíveis e pincelam o rosto novo de Warhols e suas criações contemporânessíssemas. Não fosse só o remoer de corações desacertados e Belle Epoquenanos, a quem diga firmemente que a última sobra do sentido verdadeiramente artístico é surrada a cada acionista interessado em fazer arte de capital. O lance virou business antes mesmo do dito artista - como era de costume- ver-se obsoleto e, depois, ter seu valor reconhecido e suas gêneses como temas de livros e feiras mundo afora. Fato é que essa nova onda martirizadora de fazedores de arte, ironicamente chora a morte de um dos ícones da Nova Onda da sétima arte francesa dos anos 60. O diretor Alain Resnais, soldado de um movimento (esse sim!) aderente da créme de la créme do poetismo francês, morre com quase um século de vida e diversas premiações. Juntamente a outros cineastas da época, Resnais trouxe de volta à tona traços apoderados pela grande guerra. Não só pela censura vinda dos anos cinzas do meio do século, a Nouvelle Vague retratou o inconformismo vindo de um choque entre o novo e o velho em termos de fazer arte. Não só Resnais, Godard ou Truffaut, mas todo o conjunto resistente ao surrupio da guerra era retrato do que seria não só contínuo mas recorrente ao longo do século XX. Entre as pilhas de dinheiro taxadas nas esculturas e a pilhagem do âmago artístico, chorado pelos um pouquinho mais conservadores, o produto é até satisfatório. Entre mortes e lucro nem tudo é luto. Afinal, arte tem sido feita - por menos que pareça.